Já faz algum tempo que conheci algumas das pérolas do Jair Bolsonaro, do tempo em que era só um deputado medíocre. Lembro de ter ficado impressionado com o contraste entre as partes, entrevistador e entrevistado, quando ele conversou com o Stephen Fry. O deputado parecia um galo de rinha face à erudição e a compostura de sempre do artista inglês. Naquele tempo, tinha alguma graça, uma criatura tão indescritivelmente involuída e resistente às mudanças próprias do nosso tempo. Hoje a graça acabou.
Nos dias que correm, a ascensão messiânica do político provoca, junto a muitos sentimentos, uma enxurrada de dúvidas. A principal delas, talvez, tenha a ver com empatia e solidariedade. Eu, que espero (e vivo) os dias de medo do regime do capitão, queria muito entender a mentalidade de amigos e parentes, pessoas em geral, que apoiam o voto num candidato que nada faz para esconder sua política de terror. Minha curiosidade tem a ver com o que pensam (e consomem) os eleitores dele. Afinal, vivemos todos em grandes bolhas de informação, cuidadosamente filtradas para fortalecer nossas convicções. Pergunto-me se é possível solidarizar o voto no militar e tentar aceitá-lo com resignação, como cabe no jogo democrático.
Acabo de visitar alguns dos perfis de propaganda e de apoiadores. Há muitas semelhanças nas postagens que vemos, apropriadas adequadamente de acordo com a ideologia do lado que apoiamos. Do lado do Bolsonaro, o Haddad é um vilão, a Manuela é uma desqualificada e o Lula, um bandido da pior espécie. Contudo, há algo de muito simplista: o PT é o mal comunista, assassino de crianças, corrupto como nada mais na face da Terra. É a premissa básica. Além disso, a própria visão de mundo é simplista, com os bons costumes e valores morais de um lado e a ruína de outro. A propagação de notícias falsas, como o elogio à Maduro, acentuam esse aspecto, uma vez que reforçam a dicotomia esquerda v. direita, sem nuanças, sem contexto.
Não se fala em direitos, exceto pelo direito do feto. As propostas do candidato de oposição são interpretadas sem cuidado. Propor, por exemplo, penas alternativas para criminosos não violentos significaria tirar da prisão o Sérgio Cabral – e o Lula, naturalmente. A visão maniqueísta, bem contra o mal, impede de avaliar criticamente o sistema judiciário e as condições carcerárias precárias do país. Legalizar (e regulamentar) o uso de drogas significa lançar o país numa epidemia de crack, apesar das experiências positivas de outros países. A legalização do aborto também incorre numa corrida às clínicas e num aumento generalizado da promiscuidade.
No campo da corrupção, a coisa é ainda mais simplista. Sugerem, por exemplo, um paralelo entre a truculência do Ciro Gomes no episódio de agressão a um jornalista e a repercussão que teria se fosse o Jair, mas nenhuma suspeita recai sobre o candidato do PSL e as denúncias de abuso de poder e doações ilegais em sua campanha – como caem todas sobre o candidato do PT. Ninguém fala do patrimônio da família, das falas em defesa do privilégio do Legislativo ou da defesa de tortura. Esta última, aliás, é, a despeito da declaração da ONU, pena desejável aos “comparsas” do PT – mesmo seus eleitores. A corrupção tem um viés específico, o econômico, e o capitão parece ter um salvo-conduto, desde que não seja, deus proíba, o PT. Ninguém pensa corrupção como o abuso de poder para a punição capital dos opositores. Bolsonaro torna-se uma espécie de 007, com permissão de perseguir (e extirpar) sua dissidência.
É aqui que a empatia torna-se mais difícil. Quando o Lula subiu ao poder em 2002, aturdia-me a elevação da figura ao posto de Messias. O culto ao ex-presidente tinha o mesmo caráter, de um homem capaz de resolver todos os problemas do Brasil. Agora, vemos o advento de um novo Messias – sem intenção do trocadilho. O movimento em torno do candidato do PSL provoca o mesmo tipo de blindagem e o mesmo tipo de reação. Criticá-lo é, por definição, uma demonstração de petralhismo. “Ou você está conosco ou está contra nós” – como defendeu o próprio em manifestação neste domingo. “Ou você nos apoia ou será punido com os outros da sua laia”. Não há meio termo que viabilize um voto de confiança sem endossar tal postura. Somado a este maniqueísmo, está o slogan da candidatura “Brasil acima de tudo/Deus acima de todos”, que, por si só, desconsidera a diversidade cultural brasileira e o direito de livre crença, previsto em Constituição – uma vez que o próprio Deus parece ter escolhido um lado.
Também sem qualquer oportunidade, estão as milhares de causas e os movimentos ativistas do país. Na visão simplista do eleitorado bolsonarista, o MTST é um problema a ser resolvido com sua categorização como terrorismo e não com uma política séria (e difícil) de reforma agrária. O racismo resolve-se com o fim das cotas e trabalho honesto – já que “Racismo estrutural” é papo de esquerdista. Vê-se pouco a questão da violência contra a mulher, mas este problema também estaria resolvido com mais policiamento, numa sociedade casta e temente a deus.
O mundo do bolsonarista é demasiado simples: nós contra eles. A corrupção acaba com o PT, mesmo que para isso seja preciso passar por cima de outras leis. Os militares são incorruptíveis por sua natureza e têm soluções para todos os problemas do país: a força. Se uma árvore tomba no meio da floresta e você não pode ouvi-la gritar, então ela não caiu. As inúmeras vozes da dissidência, ecoadas infinitamente na imprensa internacional e nas letras do Roger Waters, são omitidas e desconsideradas. A História é um registro sem importância de tragédias distantes, uma construção comunista do mal, não importa onde nem quando tenham acontecido ou quem tenha sobrevivido para contar.
Para o eleitor do PSL, o mundo é a Vila do Shyamalan.