Engole!

– Vai ser melhor assim, mulher. Você vai ver – ele dizia do banheiro, pegando as últimas coisas pra pôr na mala – Já faz tempo que tudo que tenho são migalhas. E é melhor eu ir embora agora que ainda acho que mereço mais que isso.

A mulher estava sentada na cama, com o quarto meio iluminado pela luz do banheiro. Ele prosseguia:
– Eu perdi essa, sabe, mulher? Cansei de competir e sei que essa tá perdida, sabe? Eu é que pareço gostar de dar murro em ponta de faca. Ele agora entrava naquela agonia de quem quer ir embora querendo ficar, e dava voltas entre os cômodos tentando achar algo que ele não sabia dizer o que era.

A mulher ficava na cama imóvel, mão na boca e olhos tristes, olhando o homem que se preparava para partir. Seus olhos diziam que, embora ela não quisesse que ele partisse, ela não podia impedí-lo. Ela também não julgava justo prendê-lo ao seu calcanhar, embora gostasse de tê-lo por perto. Ela desejava que um ânimo súbito a arrebatasse: “Vamos! Vamos!” e ela pudesse sinceramente descobrir que amava aquele homem. Em vão.

– Sabe, mulher? Eu ainda tenho sonhos – ele agora começava a se lamentar. Fazia agora o que Barthes diz do enamorado só: se esforçava em mostrar quão miserável ele se sentia por causa dela e de quantas coisas havia abdicado para se dedicar àquela mulher. Ele continuou, enquanto ela se levantava, já adivinhando o que estava por vir:

– Eu andei por aqui sempre querendo saber como você estava. Você sabia que ficava te vendo dormir? E acabei entendendo o ritmo da sua respiração. Foi o jeito de conseguir saber como você estava porque você não tinha mais tempo de me contar. Também passei a comprar todas as revistas de fofoca que podia encontrar. Era como lia sobre seu dia já que não podia fazer parte dele.

O homem conferia e reconferia a mala. Abria um pouco o zíper e empurrava algo ali, apertava um lado ali. Entrava no banheiro e conferia 100 vezes o armário. Nesse tempo e com toda essa agitação, a mulher chegava à sala e se acomodava no sofá defronte a TV. A casa era muito pequena e, por isso, embora ele estivesse falando baixo e comedido, ela podia ouvi-lo.

– Eu nunca entendi o que foi que aconteceu. Você não precisava dele. Quero dizer… eu estava aqui o tempo todo, pôxa! Disso você não pode reclamar. Você é que nunca tinha tempo pra mim. Antes tava muito ocupada. Agora é ele. Mas eu cansei, sabe? Me enchi. Eu ainda tenho muito o que fazer da vida.

Ele começava a se irritar, como se tudo aquilo que dizia o fizesse refletir sobre todo o tempo que perdeu com aquela mulher e quantas e quantas vezes tentou de novo e de novo conquistá-la, se dedicando a ela mais que a ele mesmo. Ele elevava um pouco o tom de voz e ela assumia agora o papel da vilã:

– Você foi muito sacana, sabe, mulher? Todo esse tempo você…aí…me… segurando. É isso! Me segurando! E eu, que idiota! Por mais que percebesse não podia evitar. Mas…Que diabo!? Eu estava inundado. Tinha esperanças de que você largasse aquele lixo e tivesse mais tempo pra mim. Que imbecil!

Ela se inclinou no sofá com os cotovelos sobre os joelhos juntos, as mãos pendendo para frente. Ela pôde ver seu reflexo na tela escura do aparelho de televisão. Ela se perguntava se ele não tinha razão. Talvez ela tivesse negligenciado aquele amor. Talvez ela não tenha dado atenção e oportunidade àquele homem. Ele agora se confundia com acusações:

– Às vezes me pergunto se você sabe que tudo aquilo é uma mentira. Você sabe, não sabe? Isso nunca vai te preencher. Você não quer mais é pensar que pode tá deixando escapar o amor da sua vida. Eu…eu…

Ele finalmente havia conseguido terminar de arrumar a mala e agora restava o caminho até a porta. Ele ainda insistiu. Precisava tentar de todo jeito fazer com que ela percebesse a grande bobagem que estava fazendo, deixando ele escapar assim. Enquanto caminhava pelo corredor, ele pedia, dos céus, um milagre:

– E…olha, você pode pensar o que quiser. Pode chamar de exagero mas eu ainda te amo, sabe, mulher? – à medida que a hora se apertava para atingir seu ápice, ele havia abandonado totalmente o papel de “Sr. Fortaleza” e desandava, agora que tudo estava perdido, a reforçar seu sentimento. Talvez quisesse eliminar, de uma vez por todas, sua responsabilidade nessa desventura, deixando claro para ele mesmo que ele havia tentando de todo jeito que pôde. Pôs a mala no chão, abaixou a cabeça e balançou como se não acreditasse que aquela relação tivesse, finalmente, chegado a esse ponto.

– Eu lamento muito isso tudo. Podia ter sido tão diferente…Droga… eu te amo tanto…Como isso pode ter dado tão errado? Se houvesse um jeito de voltar ao começo, como se talvez a gente ainda nem se conhecesse… – ele sorriu melancolicamente e se inclinou para novamente tomar as malas. Ele parou frente a porta da sala de TV para se despedir carinhosamente – apesar de tudo. Para a sua surpresa e ira, ela estava tão absorta, inclinada frente ao aparelho de televisão, que gesticulava para as personagens do programa que assistia.

– Eu não acredito – disse o homem, que partiu pisando duro e derrubando dois vasinhos da decoração da sala de estar, tão nervoso ele passou. Era ele, de novo, entre os dois – ENGOLE ESSA DROGA DESSE TELEVISOR!

A mulher tomou um susto com a batida da porta que voltou a si. Ela desligou a TV e caminhou sofreguidamente até o quarto, onde se deitou sobre a cama e chorou copiosamente, se agarrando aos lençóis.

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