Bohemia ou Original | Parte final

Não sei nem há quanto tempo estou deitado aqui. Mesmo onde estou, deitar no chão, de olhos fechados, e sentir o corpo abandonado é bom demais. É como descarregar energias.

Já faz algum tempo que “minha companhia” não aparecia. Ou não: tempo aqui é uma coisa difícil de medir. O fato é que não escutava o sujeito por perto. Pela primeira vez, resolvi tratá-lo por um nome:

– Deus? – sorri cinicamente – Deus? Javé? – fiz troça.

– Se eu disser que sou Raul Seixas ou Marilyn Monroe vai ser tão inacreditável quanto, não vai? Para de gritar. Quê que é?

Abri os olhos e vi o sujeito sentado no chão, olhando a paisagem.

– Não sei… tô ansioso. Como se tivesse que ir a algum lugar.

– Isso é bom. Você vai a algum lugar.

– Ué! Mas não morri? – perguntei confuso.

– Por que vocês precisam das coisas tão definitivas?

– Não são?

O homem sorriu demorado.

– A única certeza desse universo é a mudança. Transformação sobre transformação. Vocês dizem que a morte é a única certeza da vida…

Eu estava confuso.

– Não é?

– Não pode ser uma certeza se não tem como saber o que é. É uma transformação, uma mudança de estado. Anda! Levanta daí. Melhor você começar a seguir pra onde tem que ir.

Levantamos à beira-mar, numa bela praia deserta.

– Então? Pra onde eu vou? – perguntei.

– Você sabe onde está? – ele replicou.

– Na praia! – respondi, sorrindo para o homem. Ele sorriu de volta, aprovando a resposta.

– E você aprendeu alguma coisa aqui?

– Cerveja é sagrado! – levantei o dedo indicador, enfático.

– É uma ótima conclusão – riu-se.

Ficamos em silêncio. Eu olhei a paisagem e insisti, me sentindo bastante ansioso:

– Então não preciso me preocupar com o lugar pra onde vou…?

– Você não tem que se preocupar com nada – ele respondeu.

– Mas… esse lugar… é quente? Com chamas… sei lá… algo assim?

– É o que espera?

– Não. Quero dizer… não sei se mereço.

– Não sabe?

– Deveria?

– A essa altura, imaginei que sim.

Fiquei pensando o que isso queria dizer. Mas eu estava mesmo preocupado em descobrir que é possível descer ao inferno. Imaginava ao mesmo tempo, se não tinha chance de descobrir também que o “rei do pedaço” por lá fôsse um cara bacana. Olhando a paisagem distraído, aflito com minha próxima parada, ouvi um surfista dizer, com a mão no meu ombro:

– Você não entendeu, não é? Esquece o destino, brôu! – o homem de barba por fazer tinha sumido – o que importa é a onda, mermão!

Largou do meu ombro e correu pro mar, gritando:

– E tu em cima dela! U-hu!

Apenas sorri, divertido e confuso.

– “Não é o destino que é importa; é a jornada”, conhece isso não? Tão clichê – me perguntou o homem que nem vi se aproximar, fumando um cigarro. Era um negro franzino, de short vermelho e pés descalços.

– “O importante é que emoções eu vivi?” – repliquei, brincando.

Rimos.

– E é verdade – continuou o homem – Não há mesmo certezas na vida. O que importa é o que você experimenta, como experimenta…

Uma moça de cabelos loiros, banhista na praia, tomou minha mão e, me puxando para um quiosque, completou a frase do fumante:

– O que acredita e o que te faz acreditar no que acredita.

Caminhamos sem pressa. Sentíamos a areia sob os pés e a brisa forte, que ela curtia abrindo bem os braços. Olhei pra ela. Tinha belos olhos azuis. Me senti confortável, quase calmo. Senti a preocupação com meu destino mais longe. À porta do quiosque, contudo, ela disparou, de novo, a confusão.

– Esse é o inferno! – ela soprou no meu ouvido, baixinho. Eu gelei.

Depois ela gritou:

– Ou o céu! – e me empurrou pra dentro.

Agora eu estava sozinho num pub, evitando o tombo por conta do empurrão. O garçon começou:

– Eu podia transformar seu whiskey em qualquer outra coisa, pôr fogo no bar ou abrir o teto desse lugar só com um meneio de cabeça. Ainda assim, só você poderia validar que sou quem acha que sou.

Terminou de limpar parte da mesa, passou pelas minhas costas e se pôs a limpar outra parte. Uma linda morena num vestido preto pôs os braços nos meus ombros, dançando sedutora, me deu um beijo e me disse sorrindo:

– O que vai acontecer só depende de você.

Olhei o garçon confuso e desconfiado. Ele ergueu a sobrancelha como se elogiasse a morena. Entendi que o garçon ainda era deus e eu estava mesmo beijando uma linda mulher. Quando voltei a ela para aproveitar um pouco mais, um velho numa grande poltrona me dizia:

– Se você vai permanecer vivo nas memórias dos outros – me vi sentado num sofá, abraçado a mesma morena do pub, com uma criança brincando sobre o tapete

– Se vai ser guardado com carinho por muitos… – me cochichou um amigo numa mesa de bar repleta de amigos – ou se vai viver pra sempre como lenda – fez um brinde solene, agora trajado num elegante terno – só depende de como você curte a viagem.

Eu não conseguia dizer uma só palavra. Estava confuso e ainda mais ansioso, sentindo que aquela experiência ia acabar. De frente ao padre, no ato da comunhão ele me disse:

– Do pó ao pó, à vida eterna, o fim de tudo, o descanso em carbono… – disse erguendo a hóstia e depois oferecendo-a a mim – como saber senão pela fé? O que é a verdade senão aquilo a que damos crédito? – o padre aparentava ser um pastor evangélico agora.

– O que te faz merecedor da recompensa que você quiser é você mesmo.

– A única certeza que se pode ter… – começou uma velhinha simpática ao lado do meu caixão – é que tudo, absolutamente tudo no universo, muda o tempo todo – me deu a mão para que me erguesse. Quando me pus de pé, ela tinha sumido. Eu presenciava uma cena familiar, quando ainda ouvi a senhora:

– Nosso lugar é no meio dessas mudanças e a maneira como as experimentamos é que determina aonde vamos e como chegamos lá, onde quer que queiramos.

Parado no meio de uma rua, debaixo de uma chuvinha fina, eu vi eu mesmo entrando num bar. Me aproximei devagar. Lá dentro, eu terminava de cumprimentar os amigos. Vi a morena. De longe, o garçon perguntou:

– Bohemia ou Original?

De súbito me lembrei de tudo o que tinha acontecido:

– A curva!

ambulancia[1]E numa forte e dolorida resfolegada, acordei para a as cores e cheiros do meu acidente, cercado de pessoas, deitado no chão, com a chuva a lavar o sangue que vertia no asfalto. Era difícil alguém dizer quantas chances eu tinha. Agarrei a jaqueta do paramédico com toda força que tinha e gemi:

– Me lembra de nunca mais fazer isso.

Ele me olhou comiserado:

– Acho que você vai se lembrar.

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