Posso morrer a qualquer momento. Minha condição pouquíssimo incomum é marcada pela respiração constante, o sangue quente a correr nas veias e pela capacidade de agir feito um idiota. Os portadores – chamados vivos – também correm o risco de amar, embora nem todos desenvolvam esse sintoma.
A síndrome conhecida como vida acomete a todos, sem exceção – salvo os mortos, que não se salvaram, invariavelmente. Portadores da síndrome da vida não escapam: todos chegam a óbito, pelo mais variados motivos. Nesse aspecto, a vida lembra a AIDS: ficamos suscetíveis quando estamos vivos. Mesmo a AIDS só acomete os vivos. Desgraçadamente, também a morte. A morte só existe para quem padece da condição de estar vivo.
Ironicamente, alguns sintomas da vida são muito prazerosos. Alguns portadores relatam uma febre, uma euforia que os impele à realização, às micaretas e ao high society. Outros relatam o gosto por prazeres simples, como a chuva e a pescaria, o abraço e a música caipira. É importante notar que sensações de prazer, próprias dos portadores chamados vivos, podem também ter apresentações diferentes.
Não sei quanto tempo tenho. Não sei quando e como vai acontecer. Tenho a impressão de que não duro nem uma geração nas memórias de quem quer que seja. Contudo, vejo conforto na solidariedade. Enquanto tentamos prolongar ao máximo o tempo que temos, tanto colidimos quanto nos acariciamos. Partilhamos sintomas. Nos amparamos na certeza de que não duramos pra sempre, maldita condição! Nesse esforço de suportar e superar a tal síndrome, experimentamos os outros como a mais reconfortante das certezas.
Nos lançamos no tempo contra o relógio implacável da vida certos de que outros vivos estarão lá quando precisarmos. O pão quentinho, todo dia bem cedo, feito por um portador do tipo padeiro; o caminho para o trabalho em segurança realizado por um motorista; os colegas no trabalho, que vão tornar tudo mais fácil e mais ameno; a cozinheira que deixou sua comida pronta, sem precisar que você pedisse; o taxista que vai estar lá quando você precisar voltar da casa da namorada tarde da noite. Garis, policiais, lixeiros, médicos; enfermeiros, faxineiros, o cara que cuida do servidor do seu site; o office boy, o caixa do banco, o transportador de valores pro caixa automático, que parece adivinhar quando você vai precisar sacar uma grana. O mestre cervejeiro, o garçon e o dono da granja que não deixa faltar o seu tira-gosto, muito antes de você pedir ao atendente, enquanto curte um happy hour com os amigos, que também estão sempre dispostos. Todo mundo lá, certos de que muitos de nós também estarão, no tempo curto que todos temos.