Dar uma volta

Já faz muito tempo que me recomendam uma obra chamada “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”. Sempre achei um despropósito, especialmente quando não tinha uma moto. Confesso que ainda não li, é verdade, mas descobri que não se trata de um manual de conserto de motos. Muito provavelmente, nunca vou viver a aventura de cruzar os EUA de moto, mas sinto que me aproximo de uma lição semelhante andando por aí no veículo novo.

O termo “veículo novo” pode parecer exagero para quem habituou-se a ser um carrocrata, como diz o Ic, ou quem é apaixonado pela liberdade que uma motocicleta proporciona. Minha condução é um patinete – e estamos nos nossos primeiros dias de relacionamento. Engana-se quem entende que não é possível aprender muito de si com um objeto não-autônomo.

Quando comprei minha moto – que está à venda, a propósito – aprendi muito. Quando percebi quanto tempo ela me poupava, compreendi o sentido de investimento. Tori – eu dei nome à motocicleta – reduziu meu tempo de viagem de maneira que não poderia compreender. Tori me fez mais disponível. Ou me mostrou que eu poderia estar mais disponível se, de fato, eu quisesse. Não havia distância que eu não pudesse cobrir. Anos mais tarde, foi ela que me levou à Divinópolis pra poder mudar minha vida toda. Foi ela quem me trouxe de volta.

Agora aprendo com um patinete. Entendo que quem compra um patinete não está tão disposto ao isolamento. Quem compra um patinete está longe de deitar e morrer, ainda que a rotina tenda a indicar, dia após dia, casa-trabalho-trabalho-casa. O patinete, mesmo recolhido a descansar, parece dizer que amanhã é outro dia pra uma volta, nas suas velhas e doloridas pernas, cansadas de tanto caminhar sem destino.

Sempre há maneiras novas de experimentarmos aquilo a que nos habituamos. Eu mesmo, que costumo me chafurdar na monotonia, sou deslumbrado com esse planeta – e com nosso cantinho no universo. Nunca acho que uma chuva seja igual a outra. Da passarela do metrô, fico tentando identificar no pôr-do-sol o que era diferente ontem – e mesmo que nunca consiga precisar, tenho certeza de que não eram as mesmas luzes acesas, não eram as mesmas nuvens a ditar o colorido nem o mesmo vento a balançar antenas e árvores.

O patinete é quase uma maneira nova de andar. Na minha idade, é uma maneira nova de relembrar “bons tempos”, que tendem a melhorar quanto mais nos afastamos deles. Me lembrou disso um transeunte que me deu passagem, perguntando se eu relembrava a infância. Demorei pra gritar “SEMPRE!”, mas entendo que relembro muita coisa das quais havia me esquecido: de brincar como se fosse coisa séria, de esquecer que há distâncias a serem vencidas e que o passeio também tem valor especial. Nem tanto o objetivo, mas o caminho até lá.

Se fosse imitar o Pedro – que imitou uma colunista do Chicago Tribune, se não estou enganado – nunca recomendaria filtro solar. Nem patinete. Recomendaria descobertas. REdescobertas. Cientistas, como os que aprovaram o filtro solar, estiveram errados no passado – o que me provoca uma imensa admiração por eles e pelo método científico – mas descobertas acontecem sob medida. Ninguém enxerga o que não quer, o que não precisa ver. Ninguém se engana se descobre algo; fica apenas atrás de uma nova descoberta pra desfazer a anterior.

O hábito da descoberta é de mudar sempre, num universo que faz isso muito bem todo o tempo.

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