Há muito tempo atrás, mais de uma semana no passado, a gente podia ouvir o que quisesse sem preocupação. Foi uma conquista sofrida, esta que acabou, mas pareceu certa por um tempo. Não faz uma semana, parecia que podíamos dançar ao som de Beyoncé falando sobre racismo a qualquer hora. O universo engajado do pop internacional atual, repleto de mulheres poderosas, falando sobre feminismo e liberdade, soava tão somente festivo, próprio de um tempo capaz de tratar a liberdade com alguma leviandade. Neste mesmo universo, inundado da cultura e do talento negros do Hip Hop, a própria estrutura musical acaba por ser um avanço e uma reação ao pop limpinho e orquestrado dos anos 40 ou 60. No meio do século XX, um gênio como Nathaniel Adams Coles – o rei Nat Cole – era obrigado a pesadas maquiagens para “suavizar sua imagem” para a imensa audiência de seu programa na TV.
Pareceu, por cerca de 30 anos, que podíamos ouvir despreocupados a mensagem religiosa do Bono Vox exaltando um líder como Martin Luther King ou ainda os folhetins políticos produzido pelo U2 nos anos 90, “Achtung Baby” e “Zooropa” – este último, vencedor do Grammy de álbum alternativo, apesar da notoriedade da banda até ali. Pareceu possível, por algum tempo, pensar sobre um passado de opressões ao som de Pink Floyd ou, melhor ainda, Public Enemy ou Run DMC. Dava pra tocar a mensagem subversiva do The Clash sem pensar, toda vez, no contexto sócio-político que gerou a força do Punk. Para quem acostumou-se com a liberdade como uma espécie de “commodity”, aquelas canções serviam apenas para balançarmos nossas cabeças e fazer ondas com o cabelo.
Hoje, parece-me, nunca poderíamos ter descoberto a mensagem inspiradora de Roland Orzabal, sugerindo que plantemos sementes de amor, aprendendo sobre o passado nos livros. “Woman in chains” não passaria de “coitadismo” oportunista. “Mandela’s day” seria um crime: não se pode sugerir a existência de presos políticos! Peter Gabriel nunca poderia ter exaltado a luta de Steve Biko. Mesmo o Michael Jackson seria vaiado ao sugerir sua canção da Terra e a dor que o planeta sente com nossa negligência.
Todo o rock ‘n’ roll estará – ou estaria – condenado por sua natureza explosiva. System of a down, Living Colour, Metallica. O ocidente seria outro se o blues tivesse sido silenciado e se os roqueiros ingleses tivessem sido censurados ou mortos. No entanto, por um tempo, pareceu festa. Pareceu apenas música.
Nem cabe falar da herança dos nossos grandes. Estes foram logo condenados. Caetano, Gil, Vandré, Tom Zé, Elza, Chico. O que nos ensinam é, há uma semana, menos importante do que tchus e tchas e canções sobre adultério. pegação de banheiro ou embriaguez. Também não cabe sugerir as lições dos hermanos que viveram sob ditaduras em toda a América Latina. Ditadura é, faz algum tempo, um termo pejorativo pra política “bem-intencionada” de nobre gente de bem.
Acabou-se a música como nos habituamos a ouvir, despreocupados. O que temos em nós agora são hinos à liberdade e a diversidade. São lições dos que lutaram antes de nós, dos que se opuseram ao mundo injusto que encontraram.
Toda música que guardamos em nós é resistência.