O amor que não confessamos

Acontecia sempre pela manhã. Ele chegava primeiro, amaldiçoando a dor que sentia nas costas. Era um ateu convicto. Mais que isso; era absolutamente cético, mas, ainda assim, Deus era o primeiro a quem ele atribuía o problema que sentia. “Filho da puta sádico! Cretino vingativo. Fez isso só porque não acredito…” e baixava a voz sem terminar a frase. Tinha sofrido por muitos anos com um câncer nos intestinos que, depois de muitas cirurgias e remodelagens de todo o aparelho, resolveu esquecê-lo.

O mal que o acompanhava agora era uma dor na coluna decorrente da posição que assumiu em virtude dos anos e dos nervos lacerados nas diversas operações. Ele mesmo dizia, exagerado, que repuxavam o peito e o pescoço, tanto foram cortados. Morava sozinho num apartamento ali perto. Embora houvesse sofrido com a doença, era, em geral, bastante disposto. Pelo menos, nesse sentido. De humor, sua disposição era sempre azeda; a testa sempre franzida e os maxilares sempre tensos, mastigando a 4ª ou 5ª dentadura que pusera na boca. Fazia anos que não sorria para alguém.

Ela não era muito diferente. Diferiam, basicamente, na doença e no horário em que chegavam àquele banco. Vinha sempre cabisbaixa e com um semblante de uma tristeza tão profunda que parecia morta. Parecia que sentia todas as dores do mundo. Tinha um coração muito frágil, mas, também vivia sua própria piada sádica: apesar de vários pequenos infartos, a morte era incapaz de dar-lhe sossego. Restava-lhe ignorar as seqüelas e esperar que a piada tivesse fim. Um como o outro não tinham ninguém no mundo.

Ambos viveram suas vidas dedicados ao trabalho e agora podiam gozar de uma velhice um pouco mais sossegada e independente – tão independente quanto um idoso doente pode ser. Mas, de qualquer forma, não tinham laços estreitos com ninguém, já que não precisavam de cuidados de enfermaria todo o tempo. Ele escondia o verdadeiro motivo de estar ali todo dia, tão cedo pela manhã. Comentava, timidamente, que gostava de ver o sol nascendo sobre a lagoa. No entanto, se perguntava se ela também não sofria da mesma solidão arrebatadora, que o atormentava pela madrugada e que o fazia desejar os riscos da noite, esperançoso de que a morte se lhe apresentasse e pusesse fim a miséria de tantos anos. Tinha medo de constatar que sofria só uma dor que é de alguns poucos desafortunados. Tinha medo da piedade dela. Tinha medo de que ela não visse mais do que um pobre coitado digno de pena, algo menos que um ser humano.

Era exatamente assim que ela também se sentia; tinha medo de que sua tristeza, quando confessa, fosse como doença contagiosa e acabasse por afastar o velho. Tinha medo de que ele se aproximasse por compaixão e ela não pudesse evitar amá-lo por sua atenção, mesmo sem ser correspondida.Tinham dúvidas e tinham muitos medos. Se sentavam lado a lado, sentindo nada além da presença um do outro. Calados, partilhavam a mesma dor e se amparavam. No silêncio havia empatia. Poucas vezes se arriscavam a conversar, sempre temerosos de confessar uma fragilidade que botasse tudo a perder. Descobriram, eventualmente, que tinham a mesma idade. Descobriram também que frequentaram a mesma região na juventude: provavelmente os mesmos cinemas, clubes, matinês.

Com o tempo passaram a esconder de si mesmos o motivo que se sobrepunha àquele que outrora os levava ao banco. Não podiam alimentar, depois de tantos anos, uma esperança tão tola e desgraçada como a de estarem amando e sendo amados. Não àquela altura de suas vidas. No entanto, percebiam que a solidão das madrugadas era substituída por uma euforia adolescente. Imaginavam se já não haviam se esbarrado nalgum clube ou mesmo trocado flertes. E continuavam a se ver, religiosamente, sob o mesmo sagrado silêncio que testemunhava o nascer do sol.

Passavam os dias revirando fotos e bilhetes de cinema, jornais velhos e convites de festas. Sozinhos, cada um em meio a sua própria solitude, silenciando uma alegria quase infantil que insistia em tomar-lhes o peito, incômoda.

Um dia o banco amanheceu sozinho. O sol surgiu e se ergueu sem que o casal o pudesse cumprimentar. O silêncio fez-se mais cortante, mais fúnebre. Anunciava o início de duas eternidades: separados, o velhinho e a velhinha, descansavam, enfim, o repouso da morte que esperaram por tanto tempo. Entre as muitas memórias amareladas que preencheram o fim de suas vidas, duas testemunhas, igualmente separadas, recordavam um único encontro num passado remoto: Cine Soberano, dia 28 de Novembro de 1926, mesma hora, mesmo filme, poltronas I-12 e I-13.

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