A prece de Adão

Há quem tome a Bíblia Sagrada como um relato preciso da criação do mundo. Defendem até que a ordem em que o Todo Poderoso fez cada coisa é primorosa, como a luz que precede as plantas. Como é que poderiam os vegetais fazer a fotossíntese sem o ingrediente principal? Ainda assim, por mais brilhante que soe a performance criativa de Javé, o relato bíblico, como imaginam outras tantas pessoas, não é exatamente preciso. Adão que o diga.

Depois que surgiu no barro primordial, Adão, como um bebê supercrescido, precisou de tempo para entender o mundo ao seu redor. Deus podia saber de tudo, mas deixava a desejar na prática da logística: o corpanzil do primeiro homem do universo era demais para seu cérebro jovem lidar. Por muito pouco, aquele homenzarrão não se afogou na poça onde nascera, totalmente incapaz de coordenar sua musculatura. Auxiliado pelo criador, que o mantinha em lugar seco e seguro, Adão pôde descobrir o próprio corpo.

Como tinha sofrido alguma atrofia pelo tempo em que não pôde se mover, tão logo aprendeu a andar, Adão desembestou a correr. Além de não ter nada pra fazer, Adão queria recuperar a boa forma e, por isso, correu o mundo todo – o que era mais fácil de fazer na Pangeia. Foi na viagem que conheceu o paraíso onde morava e começou a dar nome aos animais que Deus tinha criado

Durante as longas viagens, Adão tinha silenciosas conversas com Javé, que podia ler seus pensamentos. Quando a corrida chegou ao fim, Deus percebeu alguma inquietação na mente de Adão. Talvez seja altura para reforçar uma ideia: a Bíblia pode não ser precisa, mas ela muito bem oculta a capacidade intelectual do primeiro homem, que nunca foi mesmo digna de nota. Tendo nascido do barro como homem feito e sem desafios mentais expressivos, Adão era mesmo o que se podia chamar de obtuso. Solitário, ele só podia conversar com a entidade a quem devia obediência. Exceto por um e outro improviso que a corrida demandava de um homem nu e descalço, não havia muito estímulo para que Adão atingisse maturidade intelectual.

A inquietação que Deus percebeu ainda era insondável, mesmo pra ele. A criação era muito recente e ele ainda não tinha tido tempo de estudá-la. Ademais, a amostra era demasiado escassa para que se pudesse fazer uma ciência acerca da natureza humana, que era ainda muito adamiana e o exemplar não era especialmente interessante. Logo, o próprio Adão meteu-se na musculação, passando os dias a carregar pesos e a pendurar-se em árvores, sem uma só preocupação na cabeça.

Aos poucos, nas corridas que dava, observando o paraíso ao seu redor, Adão percebeu que havia agora animais pequenos, que pareciam os que ele conhecia, mas em versões menores. Miniaturas de cavalos, cães, lagartos, bois. Gatinhos, vaquinhas, macaquinhos. Uma população inteira de novos minibichos. Embora tenha esperado ansioso por dias, Adão não viu nenhuma miniatura de si mesmo. Foi por causa dessa ansiedade que Javé finalmente se tocou: faltava a Adão a Adoa!

Desestimulado, Adão passou alguns dias deitado, cabisbaixo. Javé, que não admitiria nunca, tinha problemas para resolver a logística de criação da companheira do primeiro homem. Tinha admitido para si mesmo que a experiência inicial não tinha sido um grande êxito e queria evitar outra escultura em barro. Foi quando teve a ideia de engendrar um novo ser através de manipulação genética: arrancou uma costela de Adão e meteu-se no seu laboratório cósmico por algumas horas.

É mesmo verdade quando dizem que o homem foi o rascunho. O trabalho que Deus fizera na mulher era mesmo uma obra-prima! A companheira de Adão era linda: curvilínea, esbelta, com tudo nos lugares certos, uma sedosa e brilhante cabeleira sobre os ombros. Melhor do que isso, o modelo original da Adoa era dotado de curiosidade. Para a estreia da moça, Javé fez Adão sonhar e contou a ele o que esperar quando acordasse. Quando despertou de manhã, Adão encontrou a Adoa dormindo de conchinha, a cabeça dela sobre o braço esquerdo. O coração de Adão bateu tão forte e ele teve tanta dificuldade em respirar, que, não fosse a beleza da criação divina, aquele poderia ter sido o fim do primeiro homem.

A moça despertou devagar para encontrar um companheiro de olhos arregalados, incrédulo. Ela sorriu. Queria ter dito “bom dia”, mas ainda não havia uma língua com a qual pudesse se expressar. Adão, boquiaberto, não reagiu. O cérebro imaturo ainda tentava entender se era um sonho ou se era realidade. Ela, por fim, levantou-se e foi procurar o café da manhã.

Minutos depois, Adão ergueu-se numa resfolegada. Na cabeça, ele gritava o nome do Criador, como se quisesse uma explicação. Javé repassou o sonho e o confortou, admoestando-o para que ele tentasse se aproximar – afinal, ainda não se podia dizer que “mulher, patrão e cachaça em qualquer canto se acha”. Ou ele se entendia com essa ou não ia encontrar outra.

Adão aproximou-se estranhando o nome que Javé tinha dado a ela. Adoa não parecia certo; qualquer um podia ver que ela não era uma mera versão dele. Era um modelo melhorado, caprichado, bem-feito, bem acabado. Adão pensou em Gisele. Assim que a fala surgisse no mundo, ele a chamaria de Gisele! E foi ela, curiosa, que facilitou o encontro. Ela estava encantada com o jardim e apontava para tudo, como se quisesse dividir a descoberta. Ele, aos poucos, soltou-se e passou a apresentar a ela algumas coisas que ele já conhecia. Mesmo sem dizer uma só palavra, se divertiram muito. Adão mostrou a ela os benefícios da musculação e tentou fazê-la correr, mas ela não gostou da ideia de engrossar os pés delicados pisando descalça o chão duro.

Quando a noite chegou, ambos pareciam satisfeitos. Gisele dormiu logo, a cabeça cheia de informações para processar. Adão passou ainda muito tempo acordado, pensando sobre o que fazer no outro dia, empolgado por ter companhia. Teve ideia de jogar rouba-bandeira, mas não tinha jogadores suficientes para dois times. Descartou o futebol, o queimado e o volei pelo mesmo motivo – e por não ter ainda inventado a bola. Javé sugeriu que, ao invés de pensar no que falar – como falava com ele – que ele usasse as cordas vocais e verbalizasse uma conversa com ela. Foi aí que o sono foi embora! Ele ficou pensando no que dizer, como dizer. Na cabeça, ensaiava se dizia “oi”, “ei” ou “olá”. “Opa” talvez. Resolveu levantar-se e afastou-se para testar a própria voz, que também não conhecia, sem acordar Gisele.

De manhã, tendo cochilado um pouco, Adão ainda despertou antes que Gisele acordasse. Adão a observou, com um imenso frio na barriga. Ainda deitada, a moça procurou por ele e sorriu. O primeiro homem juntou toda a coragem que tinha e mandou um belo “bom dia, Gisele”. Ela ficou encantada! Gisele soava mesmo melhor do que Adoa. Ela ergueu-se, sentada no chão e levou a mão à boca dele, admirada. “Como você faz isso?”, ela perguntou, para também assombrar-se da própria capacidade de falar. A novidade foi o tema da conversa. Experimentaram palavras a manhã inteira, comentaram tudo no jardim e lamentaram não existir ainda as revistas de fofoca. Adão contou os nomes que tinha dado aos animais, alguns dos quais Gisele julgou que precisava revisar.

Os dias seguiram formidáveis. Adão e Gisele eram grandes amigos. Faziam tudo juntos, falavam de tudo. A curiosidade da moça levou a diminuta sociedade a novos patamares: café quente pela manhã, protetor solar, limonada, batatas fritas. Havaianas para proteger os pés, toalha de praia, para evitar areia em lugares recônditos. Ambos já trabalhavam num projeto de bicicleta. Era o paraíso! A natureza exuberante se aliava a confortos simples.

Foi nesse clima, numa manhã ensolarada à beira mar, que o sossego de Adão acabou. Esparramado na toalha, Gisele abraçada a ele com a cabeça sobre o braço esquerdo, o primeiro homem do universo experimentou a primeira ereção da história. O apêndice que Adão carregava e usava para aliviar a bexiga tinha ganhado vida própria! O homem deu um salto assustado, batendo a mão e ordenando “Sai! Sai!”. Gisele, que, por pouco não tinha sido atingida com uma joelhada, sentou-se assustada, procurando o amigo. Adão correu para esconder-se atrás de uns arbustos.

A moça, com medo, aproximou-se devagar, cautelosa. Adão, que a observava, sentia a ereção tomar com mais força aquela parte de seu corpo e tinha certeza de que estava possuído. Na cabeça, clamava pelo auxílio de Javé e tentava manter Gisele afastada. Gritava para que ela não se aproximasse, que ele não sabia o que estava acontecendo. Ela não desistia. Adão olhava a mulher aproximar-se e sentia a possessão mais forte. Por fim, correu floresta adentro, buscando esconderijo num lugar que só ele conhecia.

Logo que avançou alguns metros floresta adentro, Adão percebeu a possessão amenizando. Diminui o passo e observou como a sensação era muito mais física do que espiritual. Ele arriscou um cutucão. Parecia normal, embora um pouco mais inchado. Afinal, acalmou-se e decidiu tomar um banho numa cachoeira próxima. Sentiu que tudo voltara ao normal. Mesmo assim, sentou-se sobre uma pedra à beira d’água e ficou pensando sobre o ocorrido. Chamou Javé mais algumas vezes, mas o Criador, meio enciumado com o desenvolvimento tecnológico do casal que criara, andava meio ausente, pirracento.

Adão pensou em voltar para junto de Gisele. Tinha a deixado muito preocupada certamente e, como ela era tudo o que ele tinha, não podia deixar que algo assim os afastasse. Quando ele se levantou, contudo, também ergueu-se a possessão. Ainda assustado, Adão acocorou-se novamente e acabou por saltar ao lago mais uma vez. Também mais uma vez, ele pensou em Gisele e percebeu o reflexo. Decidiu então deixá-la por mais uma horas e resolveu correr.

Com o corpo cansado, não havia sinal da ereção. Sem pensar demais, Adão mudou o rumo e correu de volta para a praia. Gisele já não estava ali. Preocupado, ele tomou a trilha do abrigo que tinham feito, a alguns metros da praia. Adão alcançou o luxuoso imóvel à beira-mar, chamando por Gisele, que o surpreendeu com um abraço. O desassossego logo reapareceu. Ele tentou desvencilhar do abraço, especialmente preocupado com a posição da virilha, e escondeu-se com uma almofada, tão logo se viu separado. Gisele estava bastante confusa, uma vez que ele parecia querer evitá-la. Ele tentou dar alguma explicação, mas acabou por anunciar que precisava de um tempo sozinho, que alguma coisa estava acontecendo e ele precisava entender. Ainda escondido sob a almofada, ele se aproximou sem jeito para despedir-se, de modo que ela não ficasse especialmente preocupada. Prometeu voltar logo e partiu correndo.

A corrida foi prejudicada pela lembrança do abraço. Mesmo sem saber do que se tratava, Adão tinha entendido a relação entre aquela estranha sensação e a companheira. Enfim, a mente esvaziou-se e ele pode correr mais confortável e eficientemente. Seu objetivo era uma área ao norte, com abrigos de cavernas e mata abundante, com água potável e peixes. Era melhor prevenir, esperando uma estadia longa, do que ser obrigado a voltar sem entender. Ademais, por quanto mais tempo é que Javé poderia ficar emburrado?

Adão passou muitos dias aprendendo a lidar com a sensação. Descobriu que não era a única coisa que tinha mudado. Sempre que lembrava da companheira, a enxergava diferente. Sorria sozinho lembrando dos seus trejeitos e pensando em como ela era, a um mesmo tempo, diferente e familiar, como a peça que faltava para completá-lo. Passou muitas noites sonhando com a moça e muitos dias morrendo de saudades. Deus parecia estar de férias, o que o obrigou a criar a prece, que é uma espécie de recado que se deixa quando o Todo Poderoso parece ausente. Em algum tempo, a tal da possessão deixou de ser importante. Era muito mais complicado lidar com a falta que ela fazia e com a maneira como ele se derretia até as canelas lembrando dela.

Numa manhã, Adão acordou determinado, encheu o peito de ar e partiu correndo de volta para a amada companheira. Na secretária eletrônica, Javé poderia ter ouvido a seguinte mensagem:

“Deus, deixa que ela me aceite!”

A folhinha – que era, na verdade,  de boldo – que Adão amarrou na virilha era só pra não assustar a moça. Virou lenda!

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